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capa do livro de Raul D. Botana |
A
geladeira, de 1983, texto
pouco conhecido e encenado no Brasil,
destaca-se no cenário da dramaturgia atual por diversas razões e uma delas que
analisarei neste trabalho é a capacidade de metamorfose e de desconstrução
dramática da personagem L., imersa numa teia de fatos non-senses – herança do teatro do Absurdo de Genet, Beckett e Ionesco
–, e que representa metaforicamente o mundo contemporâneo, apesar de ter sido escrito
há mais de vinte anos no contexto francês. Composto por Raul Damonte Botana,
mais conhecido pelo seu pseudônimo Copi, o texto ácido e corrosivo desse autor
argentino, exilado na França desde 1962, por causa do período peronista e
falecido devido ao vírus HIV, é representante de um importante diálogo entre a realidade teatral francesa e latino-americana
na atualidade.
Foto 1 – O ator Márcio Vito em Leitura
Dramática da peça A geladeira, direção
de Thomas
Quillardet, 2007. Foto: Beth Gotardo.
L., nome incógnito e
indefinido, à primeira vista, configura-se como um ser andrógino e despedaçado:
pode ser vista como uma mulher, inicialmente, pois, na primeira cena, apresenta-se
como uma ex-manequim histérica, vestida de tailleur,
e que tenta inutilmente escrever suas memórias. Por outro lado, L. revela-se como
um homem “afeminado”, identificado no discurso da mãe que o chama de “bom
menino” e “viado” e
no encontro com a Doutora Freud, no qual L. se veste apressadamente de homem. Ainda
configura-se despedaçada, pois, na segunda página do texto, o leitor-espectador
já se depara com um estranho estupro de L. pelo seu chofer. A figura de L. sai
e volta à cena, em trajes rasgados, falando desesperadamente ao telefone com o
amigo Hugh, da Autrália. Em outro episódio, quando seu relógio explode, L.
entra vestida de fantasma, distanciando-se e vê o próprio corpo, desdobrando-se.
Entretanto, não se trata apenas de um homem travestido de mulher ou uma
personagem que veicula um caráter panfletário, sobre o conflito de gênero homem
versus mulher ou na busca pela
legitimidade de uma minoria social. L., assim como todas as presenças, figuras
e criaturas que surgem durante a sintética ação do texto, tornam-se seres de
linguagem, propícios e abertos para o trabalho do ator e da encenação,
interessados na construção da cena pós-dramática, na qual a fábula e discurso
linear, não são os centralizadores do espetáculo. Trazendo à tona o pensamento
de Lehmann, devo salientar que o olhar pós-dramático sobre as manifestações espetaculares
na contemporaneidade não exclui a dimensão do drama, do texto e das antigas formas
estéticas, mesmo que essa possa surgir falida ou minimizada no evento. O teatro
pós-dramático deseja operar para além desse âmbito dramático, repensando outros
modos de representação no qual, o enredo, o texto ou a história não são mais as
matrizes, mas sim o jogo, a sobreposição, a aglutinação e o confronto entre os
signos presentes na linguagem cênica.
Na primeira descrição da rubrica de A
geladeira, identifico a desconstrução da personagem dramática e
simultaneamente a conservação de uma noção de figuração dos mesmos. O dramaturgo
apresenta a seguinte proposta para a atuação na indicação abaixo:
Cenário:
um refrigerador
Um único
ator interpreta todos os personagens, mudando de roupa fora de cena ou no
palco, segundo as situações. Um fantoche de rato de espuma que se enfia como
uma luva. A doutora Freud é uma boneca de tamanho humano.
Observo que a proposta da
dramaturgia de Copi é abrir um campo de investigação para a os atuantes na
criação das figuras, vistas como seres de linguagem, pautadas ou não pela
linguagem do Realismo. Ora como bonecos, ora como objetos desfigurados, ora
como vozes – identificadas nas vozes que saem do telefone e do relógio –, a
desconstrução da personagem individualizada, realista e estritamente dramática
instaura a ideia de presenças humanas ao lado de não-humanas (como o rato e o
cão) na cena. E sobre a sugestão de um único ator interpretar todos os
personagens, vê-se o marco para a criação de um universo polifônico de
realidades ficcionais e não-ficcionais, manipuladas apenas pelas escolhas dos
artistas envolvidos no processo cênico. Goliasta, governanta, apresenta um
caráter social do “subalterno”, que auxilia os desenganos de L., mas sem o
maniqueísmo característico do excluído, comum nos dramas modernos: é
aproveitadora, indiferente aos ataques de L e destaca-se pela singularidade de
romper com a representação, revelando o ambiente cênico diversas vezes, como no
trecho: “Ela está louca, uma geladeira no meio da cena” (COPI, 2007, p. 85). Da
mesma forma, a mãe de L. descortina qualquer possibilidade de um sentimento de
afeto e cuidado com o filho, pois se utiliza do fato do aniversário de L. para
pedir dinheiro para sustentar seu gigolô, instaurando um ambiente cruel e
irônico, ao mesmo tempo. Dentro dessa tendência de liberdade dramatúrgica de
Copi, originada de suas rubricas e discursos brevemente ambíguos, cito a leitura
dramática, com atuação de Márcio Vito, com a direção de Thomas Quillardet, despido
de vestuários femininos e os artifícios cenográficos, ao lado da montagem baiana,
com a direção também de Quillardet, em Salvador, com o grupo Teatro dos Novos,
que optou por apresentar as figuras da peça por diversos atores e não apenas
um, demonstrando assim as inúmeras formas de montagem desse texto.
Raul Damonte Botana, de
acordo com a composição das figuras de A
geladeira, torna-se, segundo os estudos de dramaturgia de contemporânea de Jean-Pierre
Sarrazac, um autor rapsodo, no meu
ponto de vista como estudiosa, por apresentar mecanismos que exploram a
fragmentação nos discursos e na construção das personagens próprios da
dramaturgia contemporânea. Em O futuro do drama, o teórico francês
define tal pensamento.
(...)
a modernidade da escrita dramática decide-se num movimento duplo que consiste,
por um lado em abrir, desconstruir formas antigas e, por outro, em criar novas formas. Aqui termina a parábola do
arquitecto uma vez que, efectivamente , o escritor de teatro não trabalha nem
pensa em termos de grandes unidades estruturais. Porque toda sua atenção está
concentrada no detalhe da escrita. E o detalhe, com é sabido, significa
originariamente divisão, converter em pedaços. Logo escritor-rapsodo (raptein em grego significa “coser”), que
junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o que acabou
de unir.
Os conceitos de criatura e figura, referem-se
respectivamente às ideias de monstruosidade e antropomorfismo, levando a
personagem a assumir traços animalescos ou grotescos, no primeiro
e desencaixamento da voz e do corpo do atuante e personificação de objetos e
bonecos, num movimento brusco de dissolução da ideia da personagem como análoga
à figura humana, no segundo.
Na dramaturgia de A geladeira,
portanto, é possível facilmente dientificar esse universo. A própria L., a
boneca Doutora Freud, a vozes do relógio e telefone são figuras, assim como o
rato e o cão são podem ser vistos como criaturas.
Outra questão da
dramaturgia refere-se a um jogo preciso entre os signos de imagem – elementos
de vestuário kistch, marcados pelo
próprio sentido de exagero e distorção do termo –, estranhamento – ações
grotescas, dramáticas e cômicas justapostas e desenvolvidas em sequência – e
ilógica da ação representada – pois as figuras não reagem dentro de uma lógica
racional. L. irrompe no início a cena conversando num ritmo desenfreado com Dona
andorinha e com um amigo na Austrália e, de repente, depara-se com uma
geladeira no meio de sua sala de estar. Tal episódio desencadeia uma atmosfera
de incômodo e enigma durante toda a ação, fazendo com que L. apresente outra
característica, como uma metáfora da alienação e dilaceramento do sujeito
contemporâneo: uma condição de completa amnésia. Quem entregou a geladeira?
Será que eu a comprei e nem me lembro mais? Eu preciso de uma geladeira? São
questões que permeiam a trama e a partir do insignificante eletrodoméstico, a
figura de L. questiona-se e elabora possíveis alternativas para mudar a própria
vida.
Michel Deutsch, em artigo
sobre a cena francesa contemporânea, aponta uma certa estética dos restos e da reciclagem, ao afirmar que o teatro está caminhando cada vez mais
para múltiplas formas de sobrevivência, apesar de toda falta de incentivos e
possibilidades materiais, e solicitam
que o espectador compartilhe as invenções dos artistas cênicos, que investem
nas sucatas, nos objetos transformados, no “belo bizarro” para refletir sobre o
próprio teatro. O dramaturgo diz:
Nada
impede de imaginar que uma placa pregada (por um ator mudo diante de três
espectadores) na porta fechada de um teatro, sobre a qual estaria escrito “isto
é teatro” possa ser um gesto, uma ação, uma “peça” de teatro. A duração e o
minimalismo da ação não têm, neste caso, nenhuma importância. Só conta é o
gesto de afixar “isto é teatro” na porta de um prédio dentro do qual acontecem
normalmente as representações teatrais. Teatro de rua, performances, eventos,
etc. Em tese, pode-se dizer que há teatro sempre que alguém declara que está fazendo
teatro.
Finalmente, A geladeira, de Copi mostra-se uma obra capaz
de abarcar a invenção de diversas realidades, desconstruídas ou não, apenas a
partir do argumento da presença de um único atuante frente a uma geladeira em
cena, que desliza por camadas dramáticas e não dramáticas e veicula diversas
leituras para o espectador contemporâneo, a partir de uma noção aberta da noção
de personagem. Por isso, acredito que, com essas reflexões, eu possa contribuir
como pesquisadora, atriz e dramaturga com os estudos pós-dramáticos para um
entendimento menos vertical e mais fluido entre as relações entre texto e cena
hoje, a partir de novos olhares sobre as figuras contemporâneas.
Bibliografia
COPI
(Raul Damonte Botana). Eva Perón /
Loretta Strong / A geladeira. Trad. Giovana Soar, Ângela Leite Lopes e
Maria Clara Ferrer. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
DEUTSCH,
Michel. Na margem. Folhetim: teatro
pequeno gesto. Rio de Janeiro, n.17, p. 112-117, mai-ago, 2003.
FARIA,
Alexandre. Copi. Aguarrás. Juiz de
Fora, ano 3, ed. 13, mai-jun, 2008.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac
& Naify, 2007.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do drama: escritas dramáticas
contemporâneas. Trad. Alexandra
Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.