quarta-feira, 26 de março de 2014

indicação de texto sobre crítica

Indico a leitura do artigo:  [segue link do texto em pdf on-line]




Leiam um trecho desse primoroso texto:


"A crítica, portanto, é um exercício cultural libertador. Isto quer dizer que supõe, implica e exige, além do ofício necessário para estabelecer a comunicação e a expressão das ideias através de diferentes meios, não apenas aqueles óbvios das publicações, um universo de amplas referências para estabelecer de maneira adequada as opiniões, as sugestões, e inclusive afirmar suas próprias visões criativas derivadas de seu imaginário subjetivo. Através do seu trabalho, o crítico pode conseguir iluminar as áreas obscuras de uma obra. Colocar luz onde outros veem apenas manchas ou sombras indecifráveis. Assim ele se aventura desde sua ação individual e solitária, repito, com todo seu conhecimento, paixão e urgência em reverenciar o teatro, em busca de caminhos alternativos para encurtar a distância entre criadores e espectadores". (p. 05)

terça-feira, 25 de março de 2014

O conceito de figura de Sarrazac na dramaturgia de "A geladeira" de Copi

[texto em pdf publicado no link: VI Congresso da Abrace]

capa do livro de Raul  D. Botana


A geladeira, de 1983, texto pouco conhecido e encenado no Brasil[1], destaca-se no cenário da dramaturgia atual por diversas razões e uma delas que analisarei neste trabalho é a capacidade de metamorfose e de desconstrução dramática da personagem L., imersa numa teia de fatos non-senses – herança do teatro do Absurdo de Genet, Beckett e Ionesco –, e que representa metaforicamente o mundo contemporâneo, apesar de ter sido escrito há mais de vinte anos no contexto francês. Composto por Raul Damonte Botana, mais conhecido pelo seu pseudônimo Copi, o texto ácido e corrosivo desse autor argentino, exilado na França desde 1962, por causa do período peronista e falecido devido ao vírus HIV, é representante de um importante diálogo entre a  realidade teatral francesa e latino-americana na atualidade.



Foto 1 – O ator Márcio Vito em Leitura Dramática da peça A geladeira, direção de Thomas Quillardet, 2007. Foto: Beth Gotardo.

L., nome incógnito e indefinido, à primeira vista, configura-se como um ser andrógino e despedaçado: pode ser vista como uma mulher, inicialmente, pois, na primeira cena, apresenta-se como uma ex-manequim histérica, vestida de tailleur, e que tenta inutilmente escrever suas memórias. Por outro lado, L. revela-se como um homem “afeminado”, identificado no discurso da mãe que o chama de “bom menino” e “viado”[2] e no encontro com a Doutora Freud, no qual L. se veste apressadamente de homem. Ainda configura-se despedaçada, pois, na segunda página do texto, o leitor-espectador já se depara com um estranho estupro de L. pelo seu chofer. A figura de L. sai e volta à cena, em trajes rasgados, falando desesperadamente ao telefone com o amigo Hugh, da Autrália. Em outro episódio, quando seu relógio explode, L. entra vestida de fantasma, distanciando-se e vê o próprio corpo, desdobrando-se. Entretanto, não se trata apenas de um homem travestido de mulher ou uma personagem que veicula um caráter panfletário, sobre o conflito de gênero homem versus mulher ou na busca pela legitimidade de uma minoria social. L., assim como todas as presenças, figuras e criaturas que surgem durante a sintética ação do texto, tornam-se seres de linguagem, propícios e abertos para o trabalho do ator e da encenação, interessados na construção da cena pós-dramática, na qual a fábula e discurso linear, não são os centralizadores do espetáculo. Trazendo à tona o pensamento de Lehmann, devo salientar que o olhar pós-dramático sobre as manifestações espetaculares na contemporaneidade não exclui a dimensão do drama, do texto e das antigas formas estéticas, mesmo que essa possa surgir falida ou minimizada no evento. O teatro pós-dramático deseja operar para além desse âmbito dramático, repensando outros modos de representação no qual, o enredo, o texto ou a história não são mais as matrizes, mas sim o jogo, a sobreposição, a aglutinação e o confronto entre os signos presentes na linguagem cênica[3]. Na primeira descrição da rubrica de A geladeira, identifico a desconstrução da personagem dramática e simultaneamente a conservação de uma noção de figuração dos mesmos. O dramaturgo apresenta a seguinte proposta para a atuação na indicação abaixo:
Cenário: um refrigerador
Um único ator interpreta todos os personagens, mudando de roupa fora de cena ou no palco, segundo as situações. Um fantoche de rato de espuma que se enfia como uma luva. A doutora Freud é uma boneca de tamanho humano[4].
Observo que a proposta da dramaturgia de Copi é abrir um campo de investigação para a os atuantes na criação das figuras, vistas como seres de linguagem, pautadas ou não pela linguagem do Realismo. Ora como bonecos, ora como objetos desfigurados, ora como vozes – identificadas nas vozes que saem do telefone e do relógio –, a desconstrução da personagem individualizada, realista e estritamente dramática instaura a ideia de presenças humanas ao lado de não-humanas (como o rato e o cão) na cena. E sobre a sugestão de um único ator interpretar todos os personagens, vê-se o marco para a criação de um universo polifônico de realidades ficcionais e não-ficcionais, manipuladas apenas pelas escolhas dos artistas envolvidos no processo cênico. Goliasta, governanta, apresenta um caráter social do “subalterno”, que auxilia os desenganos de L., mas sem o maniqueísmo característico do excluído, comum nos dramas modernos: é aproveitadora, indiferente aos ataques de L e destaca-se pela singularidade de romper com a representação, revelando o ambiente cênico diversas vezes, como no trecho: “Ela está louca, uma geladeira no meio da cena” (COPI, 2007, p. 85). Da mesma forma, a mãe de L. descortina qualquer possibilidade de um sentimento de afeto e cuidado com o filho, pois se utiliza do fato do aniversário de L. para pedir dinheiro para sustentar seu gigolô, instaurando um ambiente cruel e irônico, ao mesmo tempo. Dentro dessa tendência de liberdade dramatúrgica de Copi, originada de suas rubricas e discursos brevemente ambíguos, cito a leitura dramática, com atuação de Márcio Vito, com a direção de Thomas Quillardet, despido de vestuários femininos e os artifícios cenográficos, ao lado da montagem baiana, com a direção também de Quillardet, em Salvador, com o grupo Teatro dos Novos, que optou por apresentar as figuras da peça por diversos atores e não apenas um, demonstrando assim as inúmeras formas de montagem desse texto.
Raul Damonte Botana, de acordo com a composição das figuras de A geladeira, torna-se, segundo os estudos de dramaturgia de contemporânea de Jean-Pierre Sarrazac, um autor rapsodo, no meu ponto de vista como estudiosa, por apresentar mecanismos que exploram a fragmentação nos discursos e na construção das personagens próprios da dramaturgia contemporânea. Em O futuro do drama, o teórico francês define tal pensamento.
(...) a modernidade da escrita dramática decide-se num movimento duplo que consiste, por um lado em abrir, desconstruir formas antigas e, por outro, em criar  novas formas. Aqui termina a parábola do arquitecto uma vez que, efectivamente , o escritor de teatro não trabalha nem pensa em termos de grandes unidades estruturais. Porque toda sua atenção está concentrada no detalhe da escrita. E o detalhe, com é sabido, significa originariamente divisão, converter em pedaços. Logo escritor-rapsodo (raptein em grego significa “coser”), que junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o que acabou de unir. [5]

 Os conceitos de criatura e figura, referem-se respectivamente às ideias de monstruosidade e antropomorfismo, levando a personagem a assumir traços animalescos ou grotescos, no primeiro[6] e desencaixamento da voz e do corpo do atuante e personificação de objetos e bonecos, num movimento brusco de dissolução da ideia da personagem como análoga à figura humana, no segundo[7]. Na dramaturgia de A geladeira, portanto, é possível facilmente dientificar esse universo. A própria L., a boneca Doutora Freud, a vozes do relógio e telefone são figuras, assim como o rato e o cão são podem ser vistos como criaturas.  
Outra questão da dramaturgia refere-se a um jogo preciso entre os signos de imagem – elementos de vestuário kistch, marcados pelo próprio sentido de exagero e distorção do termo –, estranhamento – ações grotescas, dramáticas e cômicas justapostas e desenvolvidas em sequência – e ilógica da ação representada – pois as figuras não reagem dentro de uma lógica racional. L. irrompe no início a cena conversando num ritmo desenfreado com Dona andorinha e com um amigo na Austrália e, de repente, depara-se com uma geladeira no meio de sua sala de estar. Tal episódio desencadeia uma atmosfera de incômodo e enigma durante toda a ação, fazendo com que L. apresente outra característica, como uma metáfora da alienação e dilaceramento do sujeito contemporâneo: uma condição de completa amnésia. Quem entregou a geladeira? Será que eu a comprei e nem me lembro mais? Eu preciso de uma geladeira? São questões que permeiam a trama e a partir do insignificante eletrodoméstico, a figura de L. questiona-se e elabora possíveis alternativas para mudar a própria vida.
Michel Deutsch, em artigo sobre a cena francesa contemporânea, aponta uma certa estética dos restos e da reciclagem, ao afirmar que o teatro está caminhando cada vez mais para múltiplas formas de sobrevivência, apesar de toda falta de incentivos e possibilidades materiais, e  solicitam que o espectador compartilhe as invenções dos artistas cênicos, que investem nas sucatas, nos objetos transformados, no “belo bizarro” para refletir sobre o próprio teatro. O dramaturgo diz:
Nada impede de imaginar que uma placa pregada (por um ator mudo diante de três espectadores) na porta fechada de um teatro, sobre a qual estaria escrito “isto é teatro” possa ser um gesto, uma ação, uma “peça” de teatro. A duração e o minimalismo da ação não têm, neste caso, nenhuma importância. Só conta é o gesto de afixar “isto é teatro” na porta de um prédio dentro do qual acontecem normalmente as representações teatrais. Teatro de rua, performances, eventos, etc. Em tese, pode-se dizer que há teatro sempre que alguém declara que está fazendo teatro.[8]
Finalmente, A geladeira, de Copi mostra-se uma obra capaz de abarcar a invenção de diversas realidades, desconstruídas ou não, apenas a partir do argumento da presença de um único atuante frente a uma geladeira em cena, que desliza por camadas dramáticas e não dramáticas e veicula diversas leituras para o espectador contemporâneo, a partir de uma noção aberta da noção de personagem. Por isso, acredito que, com essas reflexões, eu possa contribuir como pesquisadora, atriz e dramaturga com os estudos pós-dramáticos para um entendimento menos vertical e mais fluido entre as relações entre texto e cena hoje, a partir de novos olhares sobre as figuras contemporâneas.
Bibliografia
COPI (Raul Damonte Botana). Eva Perón / Loretta Strong / A geladeira. Trad. Giovana Soar, Ângela Leite Lopes e Maria Clara Ferrer. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.  
DEUTSCH, Michel. Na margem. Folhetim: teatro pequeno gesto. Rio de Janeiro, n.17, p. 112-117, mai-ago, 2003.
FARIA, Alexandre. Copi. Aguarrás. Juiz de Fora, ano 3, ed. 13, mai-jun, 2008.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do drama: escritas dramáticas contemporâneas. Trad. Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campo das Letras, 2002.




[1] O texto A geladeira pode ser encontrado traduzido para o português por Maria Clara Ferre na breve coletânea, que contém ainda as peças Eva Perón, de 1969 e Loretta Strong, de 1974, da Coleção Dramaturgias, da editora 7Letras, coordenada pela pesquisadora Ângela Leite Lopes, 2007. A peça teve uma leitura dramática, em São Paulo (Agosto) e no Rio de Janeiro (Setembro e Outubro), com a atuação de Márcio Vito e direção de Thomas Quillardet, dentro da programação do Ano da França no Brasil e do Festival Riocenacontemporânea. Simultaneamente, Quillardet monta o texto com a Companhia Teatro dos Novos, em Salvador, no Teatro Vila Velha, no período de 21 de Agosto a 26 de Setembro, 2007. 
[2] COPI, 2007, p. 96.
[3] LEHMANN, p. 34. “Pode-se então descrever assim o teatro pós-dramático: os membros ou ramos do organismo dramático, embora como um material morto, ainda estão presentes e constituem o espaço de uma lembrança “em irrupção”. “
[4] COPI, p. 81.
[5] SARRAZAC, p. 36-37.
[6] SARRAZAC, p. 97.
[7] SARRAZAC, p. 103-106.
[8] DEUTSCH, p. 113.

Papo de crítica

A partir de abril de 2014, iniciarei o projeto de construção desse blog, com o objetivo de divulgar resenhas, artigos e olhares sobre espetáculos teatrais brasileiros diversos, produzidos por mim e por convidados.

Uma das ações é a disciplina que ministrarei na UFS (Universidade Federal de Sergipe), onde sou professora de Teatro: Crítica Teatral, e a proposta é fomentar a produção de textos críticos pelos alunos do curso de graduação, buscando incentivar futuros pesquisadores na área.

Bem-vindos ao burburinho!