sexta-feira, 13 de julho de 2018

O que permanece de um todo de que se retirou uma ou várias partes?


Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Foto: Panmella Ribeiro

O que é a vida? Como defini-la? Debruçando-se sobre essa questão, o filósofo italiano Giorgio Agamben recorre à cultura grega, especialmente a Platão e Aristóteles, para tentar estabelecer sua própria percepção a respeito do tema. Fundamentado em dois termos gregos distintos utilizados para exprimir o que chamamos de “vida”, zoé e bios, Agamben destrincha aos poucos o assunto.
Zoé, na antiguidade grega, é a vida natural, ligada às dimensões biológicas e orgânicas, regida por normas da natureza e de instintos puramente animais e de (sobre)vivência, livre da cultura e da vontade. É o simples fato de viver comum a todos os seres vivos. Ou seja, zoé é o que aproxima a condição humana da animal: a imersão corporal no mundo, as exigências biológicas enquanto simples dimensão fisiológica ou metabólica. Aqui, os seres não se qualificam individual e nem socialmente, suas relações são pré linguísticas e, portanto, não organizadas de forma lógica e intencional; sendo apenas guiados por impulsos naturais.
Bios indica a forma ou maneira de viver qualificada, própria de um indivíduo ou de um grupo. É a vida historicamente elaborada, qualificada por uma característica própria dos seres humanos: a linguagem. Assim, o ser humano passa a ser político e, possibilitado de ter uma vida em comunidade, não busca somente viver, mas levar uma boa vida, de acordo com preceitos adquiridos. Ele cria racionalmente a pólis com a finalidade de viver bem, mas com ela nasce o poder. E a natureza do poder corrompe a vida.
A pólis transforma a vida em objeto manipulável de dispositivos e estruturas ordenadoras do poder, castrando os sujeitos. Toda existência humana, pela ordem jurídica, é sagrada, sendo o primeiro direito humano o direito à vida. Mas esse mesmo ordenamento jurídico capta a vida e decide a maneira como ela deve ser vivida. Decide seu início e também seu fim. Decide a maneira que deve ser exercida a sexualidade das pessoas, decide quem deve viver ou não, decide qual vida merece ser vivida.
Assim, a pólis, espaço de comunhão da vida coletiva, é um espaço de limitação. Nela se busca construir uma vida além da zoé, pois essa deve se restringir ao ambiente da casa, da oikos. A bios, que se apresentava como o maior dos presentes para a dignificação do homem sobre os animais, se demonstra como uma prisão que qualifica a vida, na medida em que exige sua entrega às normas estabelecidas. Ao dizer "eu", o sujeito não pode mais ignorar a sua bios, está preso a ela e é levado a esquecer-se de sua infantil zoé. Assim, ele estará sempre em construção, no limiar entre o privado e o público.
Esses termos são fundamentais para se pensar os limites da condição humana, as fronteiras entre o humano e o inumano. Ao longo da história, as sociedades fundamentadas sob moldes ocidentais se distanciaram daquilo que os gregos chamavam de zoé a vida animalesca, instintiva , dando lugar à razão.
O espetáculo Zoé: restos de uma vida nua vai de encontro ao questionamento da soberania e hegemonia do racional em detrimento da zoé. A padronização da vida, do pensamento e dos corpos que leva a mecanização da existência e a diluição do que é sensível ao humano. Impossibilitados de comunicar-se com o exterior, dois corpos nus dançam seus restos. Se contagiam.
Os sons externos se confundem com os sons corporais dos atores. Os corpos se fundem entre si. Se mesclam e se penetram a todo momento. Revelam a possibilidade eterna e pulsante da contaminação. Quem controla aquilo que nos afeta? Não há segredo ou qualquer razão que isole um sistema emocional de nós. Ninguém está imune: o outro sempre acaba nos encontrando. Evoluímos pela contaminação. Ou morremos por ela. Para se falar de vida, é preciso também falar de morte, já que uma depende da outra para poder existir.
O espetáculo de teatro-dança tem influências do butoh e do contato improvisação, trazendo à cena corpos disformes, animalescos, movimentos subjetivos e por vezes repetitivos que causam estranhamento e estabelecem sentidos de acordo com o olhar de cada espectador. Durante a maior parte do espetáculo, apenas dois corpos e suas respirações ocupam o espaço cênico com sutileza, delicadeza e profundidade.
Constituído por fragmentos, o espetáculo caminha entre duplos morte/vida, luz/sombra, dentro/fora, expansão/contração – que revelam a essência humana afastada da racionalidade, abdicada de comunicação verbal. Em Zoé: restos de uma vida nua é o corpo que se manifesta. O corpo dividido jorra flores. O corpo grita a sua história e revela suas linhas. A pele demarcada cospe feridas íntimas. Revela restos de existência guardados nos músculos de cada corpo presente. O que sobra depois da contaminação?
Em virtude do minimalismo estético da cena, qualquer elemento que revela-se no palco também grita. Até mesmo ossos e suor comunicam. A iluminação e as projeções acompanham o som e o ritmo da cena que flui em (des)harmonias envolventes. Adentramos profundos sentimentos através das diferentes ambientações que a luz aciona. Em angústias, suspensões, fluidez, inquietações, aflições e apneias consiste o frenesi selvagem do espetáculo. O rito do ritmo desenvolvido pelos atores em cena expande os sentidos do público, que a esta altura está à flor da pele.
Quando o espetáculo caminha para o remate, um elemento cenográfico desponta em cena: uma taça de medicamentos que, em determinado momento, banha um corpo que a esta altura já não se encontra mais nu. Esse corpo apartado de sua natureza animal está doente. A "cura" realmente cura? Vivemos tempos cruéis onde precisamos ser saudáveis o tempo todo. E nos sentimos culpados de inúmeras maneiras quando não estamos. Mas nem tudo tem cura. Algumas feridas podem nos transformar profundamente e doerem para sempre. No súbito reflexo de um frêmito de desespero onde a razão domina os impulsos, um corpo tenta se salvar enquanto urubus de todas as espécies comem os seus restos. O que fica no espectador são as tensões e afetações quase que físicas de momentos de (in)consciências corporais.

FICHA TÉCNICA
Dança: Diego Abegão e Vinícius Amorim
Encenação e iluminação: Vinícius Amorim
Execução d
e iluminação: Laura Reis e Daniele Viola
Orientação: Éden Peretta
Produção: Anticorpos
investigações em dança
Classificação indicativa: 16 anos

REGISTRO FOTOGRÁFICO

Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Teatro Ouro Preto | Fevereiro de 2018.
Fotos: Panmella Ribeiro e Amanda Gardillari


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Humanitas, 2010.
BAPTISTA, M. R. Notas sobre o conceito de vida em Giorgio Agamben. In: Revista Profanações, v.1, n.1, 2014, p. 53-74. Disponível em: <http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof/article/view/632>. Acesso em julho de 2018.
BARBOSA, Jonnefer Francisco. Formas e Políticas da vida. In: Kínesis, Vol. I, n° 02, 2009, p. 105-123.
RIGO, José Rogério; JUNGES, Fábio César. (2012). Biopolítica: Reflexões a partir de Giorgio Agamben. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, v. 1, p.1154-1161. São Leopoldo.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Dez incômodos de um modo como

Por: Camila Vendramini


Você sente alguma inquietação? Quando ela surge de fato, costuma ser em ambientes privados ou públicos? Ordens causam desconfortos? E você, por existir, gera algum importuno? Estimular constrangimentos é prazeroso?  Quando o seu saber é refutado você se incômoda? 

Pode-se mencionar que no dicionário incômodo é “um adjetivo na língua portuguesa que se refere ao que não é cômodo, confortável ou aconchegante. Também pode se referir a condição de mal-estar, indisposição ou perturbação provocada por algo.”

Na percepção da filosofia o próprio ato de contestar era uma forma de filosofar, de incomodar a paz e ordem social, podendo ser um perigo para as manobras políticas, os padrões sociais, e os privilégios vigentes na sociedade do capital.  Desde Sócrates na Grécia Antiga, em plena praça pública, o incômodo era algo presente, utilizando do método da dialética, através de estratégias em que a princípio se colocava no lugar de “não-saber” e aprendiz, para depois atacar com ironia o seu interlocutor contestando o seu saber, gerando assim um desconforto.   

O ato de perceber o que incomodava o grupo de teatro Calopsita, foi o mote de inspiração para a construção do espetáculo Em cômodos do modo como, da diretora Flaviane Flores Vieira de Magalhães. O lugar escolhido foi uma casa abandonada de Ouro Preto, havendo 10 cômodos que eram ocupados por 10 artistas com suas temáticas: religião (o paralelo entre céu e inferno), racismo (as mortes causadas em função da cor de pele) , mulher (pura e impura),  capitalismo (as grandes marcas que rege o sistema econômico do país), o riso (o poder que as piadas tem na sociedade), operários (exaustivas cargas horárias de trabalho) e dentre outras questões, que foram trabalhadas nas linguagens da instalação, performance e teatralidade, além dos corredores que coabitavam ações feitas pela “ordem do dia”.

Era uma espécie de visitação a uma galeria/museu em constante movimento, onde ao chegar havia a ordem do dia que entregava um formulário para o espectador preencher. E de acordo com avaliação da classe social, racial e de gênero, o público tinha mais ou menos tempo para visitar o museu. A subversão dos privilégios sociais era posta em xeque logo na entrada.

Pela casa havia camadas de teatralidade, ações, performances, instalações, produzidas a partir dos incômodos pessoais dos artistas envolvidos. Mesmo assumindo uma identidade pessoal, os artistas provocavam nas suas ações uma arte coletiva, onde todos se tornassem autores daquela obra. O espectador fazia a obra acontecer, e a mesma se modificava a partir dele em constante construção, se fazendo e se refazendo, dado à autoria compartilhada por todos os envolvidos durante as performances/instalações.

Os artistas foram a ponte de um entrelugar, um estado transitório para o desenrolar das ações, eles preparam o espaço para se entregarem ao jogo com espectador, convidando este a vivenciar uma experiencia sensorial na sua trajetória da visitação. Segundo David Sperling (2008, p. 128), "o artista transmutado em propositor convida o espectador, pelo ato, a tornar-se participante e, 'pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive'. Participação como ato imanente; a obra é o ato de fazê-la".

Intervenção Qual é sua graça?, realizada durante a apresentação de Em cômodos do modo como. Foto: Nathane Nathana 

Além disso, a proposta do espetáculo era que a relação não ficasse apenas no campo visual – o espectador como voyeur – como é de costume no teatro dramático, em que há uma cisão entre o artista que faz e o público que assiste, mas possibilitar a ele fazer e explorar outras percepções dos sentidos.

Dentro desta ótica, parafraseando Ana Bernstein (2005, p.382), pode-se dizer que a performance possibilita ao espectador re(agir) diante da ação, ele deixa de ser o espectador no sentido tradicional “daquele que vê, ou olha para uma cena ou ocorrência; espectador, circunstante, observador”, isto é, um observador distante, passivo. E passa a ser um espectador ativo e participante do evento artístico, podendo ser o próprio responsável pelo seu percurso experimental.

A ideia do espetáculo se aproximava de uma experiência singular e uma responsabilidade direcionada para o público, estes tinham que decidir como se relacionar com a obra de cada cômodo, mesmo que cada espaço proporcionava um jogo relacional único. Segundo Ricardo Basbaum (2008, p. 111), “mover 'você' (público) da posição passiva de espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria experiência”, o que associa em certa medida ao posicionamento do público em relação ao espetáculo Em cômodos do modo como, já que cabiam a eles decidirem quais seriam os desfechos da sua participação.

Sendo eu sujeito da minha própria experiência na obra, abarcou uma singularidade presente no espetáculo como um todo, já que, cada instalação em um cômodo da casa me causava um incômodo único, seja pela sua temática ou até pela escolha estética do artista que coabitava aquele espaço.

Por fim, penso que, o espetáculo quebrou as paredes que separam artista que faz e público que recebe, se deslocando para um campo onde possamos construir uma rede colaborativa para o fazer artístico, desmistificando as zonas de conforto que estamos habituados na arte, gerando des-confortos.

Artistas envolvidos:

Alexandre Reis – performance ORDEM DO DIA
Bia Mendes – performance ANTI-CONCEPÇÃO FEMININA
Berilo Luigi Deiró Nosella – PROFESSOR ORIENTADOR
Bruna Massaro – performance ORDEM DO DIA
Cláudio Falcão – performance ORDEM DO DIA
Deivison Silvestre – exposição HQ MUNDO AZUL
Ernesto Alves De Almeida – intervenção PINTURA VIVA
Everton Lampe – performance HETEROTOPIAS: ENTRE O CÉU E O INFERNO
Everton José – performance SEM VALOR
Fany Magalhães – DIREÇÃO E PRODUÇÃO
Felipe Cunha – performance A INACREDITÁVEL DIGNIDADE DO BÍPEDE QUE RASTEJA
Fernanda Bacha – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Fernando Augusto – performance ORDEM DO DIA
Fredd Amorim – performance ORDEM DO DIA
João Paulo Sousa – DESIGN GRÁFICO
Jotapê Antunes – performance ORDEM DO DIA
Laís Pires – performance INCLASSIFICAÇÃO LIVRE
Luís Fernando Castro – performance ORDEM DO DIA
Mariana C. Arantes– performance QUAL A SUA GRAÇA?
Marcelo Fernando – vídeo instalação ONTEM-HOJE-ONTEM
Márcio Masselli – performance DRAMA 2º TURNO
Mateus Aquino – performance ORDEM DO DIA
Natália Marques – exposição DESENHO DO CORPO LIVRE
Paulo Carvalho – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Cão Pereira – intervenção PINTURA VIVA
Raphael Modesto – performance AÇOUGUE
Rody Ocampo – intervenção PINTURA VIVA
Winny Rocha – performance A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL

Referenciais bibliográficas:
BERNESTEIN, A. Marina Abramovic: do corpo do artista ao corpo do público. 2005
BRAGA, P. Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.


quarta-feira, 11 de julho de 2018

Um espetáculo para convidar um amigo


A Cantora Careca: Um espetáculo para convidar um amigo

No dia 31 de novembro de 2017 o programa TUI: Teatro Universidade Informação da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) apresentava sua versão para o espetáculo A Cantora Careca de Eugène Ionesco.    

Sendo um dos grandes marcos do chamado teatro do absurdo, a dramaturgia segue toda a lógica do “movimento” denominado pelo teórico Martin Esslin durante a década de 1960, diálogos sem uma racionalidade aparente, com grande presença de elementos linguísticos que reforçam a incomunicabilidade que o autor romeno pontuava em suas obras.

A companhia do TUI, coordenada pelo professor Wilson Oliveira na ocasião, mantém os pontos fortes da obra intocados, a derrisão é clara durante a montagem, a não linearidade da dramaturgia continua apresentada, porém percebe-se a encenação de Rafael Carvalho presente nas sutis adaptações feitas para se atualizar, tanto em questão de época quanto em questão de local da apresentação, respectivamente, 2017 e Brasil em relação a década de 1950 na França.

O encenador utiliza de videomappings de Danilo Roxette para trazer elementos da tecnologia atual para exacerbar ainda mais o caráter não lógico da peça, projeções sobre atores com elementos da história brasileira, como a ditadura militar, com cenas e sons de conflitos, movimentos nacionalistas além de um trabalho dos próprios atores que bradavam falas incoerentes entre si, mas de grande potência quando isolados, atualizam e situam a apresentação no momento histórico presente.

É para assistir esse espetáculo que me encontro na fila ao lado de um amigo que não possui nenhum conhecimento prévio, seja sobre a peça, o autor ou a dramaturgia que se seguiria. Lanço a ele uma superficial explicação sobre o movimento e o contexto histórico do autor e da peça. Superficial tanto por minha não especialidade no assunto como também pelos 15 minutos que esperamos até estarmos acomodados em nossos lugares para que a peça começasse.

E começou com extrema intensidade: atores cantam, interpretam e realizam seus movimentos cênicos com uma carga de veracidade que vão de encontro com as palavras aparentemente sem sentido que saem de suas bocas, o que causa um efeito engraçadíssimo rapidamente contagiando a plateia e meu amigo que gargalhava ao meu lado.

Assim segue toda a encenação com pontos de relevância especial, destacados por meu próprio amigo não especialista: a cena das anedotas e a cena do casal que é casado e não se reconhece. Percebi a consciência de Rafael Carvalho para dar a esses pontos cruciais da peça a importância necessária para que ficassem marcadas no espectador, pontos que não se prendem pelo que contam dramaticamente, mas pela força imagética, simbólica e de derrisão que carregam.

A satisfação com que meu amigo deixou o Teatro Ouro Preto no Centro de Artes e Convenções da UFOP, acompanhada pela minha própria, deixou claro para mim o sucesso da encenação, mesmo com alguns problemas técnicos como atores que nitidamente não estavam devidamente familiarizados com a iluminação desenvolvida por Elvis Damasceno, em alguns momentos atores inclusive olham para os refletores buscando o foco no qual deveriam atuar.

Contratempos mínimos quando comparados com os acertos que a companhia, a meu ver, realizam através da adaptação sutil de um texto, atualmente, visto como um clássico moderno.


A Cantora Careca do TUI é uma recomendação pessoal a todos, seja para pessoas ligadas ou não ao meio teatral, e estará novamente em cartaz no dia 20 de julho de 2018, no teatro Sesi Mariana as 19h, fazendo parte da programação do Festival de Inverno de Ouro Preto, a entrada é franca e a classificação etária de 12 anos.

Ficha Técnica:

Adaptação Dramatúrgica: Rafael Carvalho e TUI

Encenação: Rafael Carvalho


Música de Cena (Concepção e Execução): Felício Godinho e Saulo Moraes

Concepção de Figurinos e Maquiagem: Jéssica Luiza Cardoso

Confecção de Figurinos e Bigode: Raphael Modesto

Videomapping: Danilo Roxette

Iluminação: Elvis Damasceno

Produção: Gislayne Érika

Concepção de Cenografia: Rafael Carvalho

Marcenaria: UFOP


terça-feira, 10 de julho de 2018

Para Todos os Jesuses


Todo mundo conhece outras versões de histórias bíblicas, sejam elas de memes da internet, de documentários do History Channel, matérias de revistas ou estudos embasados e comprovados por historiadores, antropólogos, entre outros. Hoje em dia as tantas histórias metafóricas que recheiam o tal livro sagrado já provaram ser exatamente o que sempre foram: metáforas. Para falar sobre um tempo muito, muito distante. Mas, curiosamente, existem pessoas que insistem que elas realmente aconteceram, batendo o pé e afirmando as mãos de Deus em fatos terrenos: uma mulher nascida da milagrosa costela de um homem? Óbvio... Outra mulher que engravida virgem e sem sexo? Porque não? Um homem que andava sobre as águas? Vemos todos os dias.
A Igreja Católica Apostólica Romana deu seu jeito durante todo este tempo (e ainda dá) de pintar o tal Messias como o único salvador, como se somente ele tivesse passado por todos os sofrimentos do mundo e não houvesse mais ninguém a altura. O único prometido a salvar essa terra cheia de pecados foi incompreendido e o final todos já sabem: ele morreu por nós. Por mim, por você, pelo mundo inteiro. Mas a comoção em volta de uma das histórias mais famosas de todos os tempos parece ocultar a simplicidade dos fatos reais: um homem com ideias subversivas à ordem e a paz civil que foi morto pelo Estado. Não parece muito único, né? De lá pra cá, cidades cresceram através do sofrimento e morte de escravos, mulheres e homens que tentaram um suspiro de igualdade e justiça foram torturados, guilhotinados, esfaqueados, baleados, apedrejados, esquartejados, enforcados, mortos. Pessoas que tem coragem de peitar os estados opressores que as regem a gente conhece demais ao longo da história. Jesus Cristo morre todos os dias nos morros do Rio de Janeiro. Jesus Cristo foi torturado e morto durante a Ditadura Militar de 1964 (Brasil). Jesus Cristo carregou muita pedra nas costas pra erguer a histórica Ouro Preto.
Todo mundo sabe que Ouro Preto é uma cidade cheia de pontos turísticos. Um lugar que abrigou uma forca durante a primeira metade do século XIX é um deles. Muitos Nazarenos desafiadores da moral e dos bons costumes devem ter morrido por ali também. Depois da morte da estrela principal daquela sagrada escritura que diz trazer a salvação junto de si, essas várias histórias foram encenadas com o decorrer das décadas, por vezes para a catequização, por outras para serem criticadas e subvertidas mesmo e como é bom quando a segunda opção acontece.
Jesus Era Um Rebelde é um espetáculo itinerante que não só ocupa parte das ruas erguidas por muitos Jesuses negros como também o espaço de assassinato de vários outros Jesuses da mesma época. Explorando vários ângulos, alturas e direcionamentos nas cenas, além de conter instalações, iluminação com fogo e recursos multimídia para a cenografia, essa ocupação do Morro da Forca é um dos pontos altos do espetáculo, pela raridade de acontecimentos no local e pela conexão dos fatos históricos. O público é conduzido a peregrinar da rua até a parte final do Morro, o que funciona muito bem durante toda a encenação, apesar da dificuldade para escutar algumas falas das personagens em determinados momentos.
Os diversos blocos propostos pela peça dão a entender que cada um corresponde a um acontecimento bíblico e para cada acontecimento há uma ligação com um fato atual ou uma nova versão, na maioria das vezes através da visão de uma mulher. Subvertendo algumas histórias da Virgem Maria e de Maria Madalena, Jesus Era Um Rebelde consegue mostrar como a Bíblia carrega uma visão masculina que consegue distorcer atos a primeira vista sagrados e milagrosos, mas que na verdade podem ter sido repletos de crueldade e abuso contra a mulher mesmo.

No entanto, fico me perguntando se há necessidade de tantos gritos e bombas durante algumas cenas. Acredito que esses tipos de recursos cansam o espectador e que a mensagem pode ser transmitida sem a necessidade desse ápice sonoro, além tornarem determinadas cenas dramáticas em excesso. Também me pergunto sobre até que ponto algumas cenas precisam necessariamente ser tão extensas, trazendo uma falta de objetividade. Isso faz com que as duas horas do espetáculo carreguem algumas repetições que poderiam ser evitadas. Apesar disso, as diferentes ocupações do espaço instigam do começo ao fim, até que um show de rock estrelado pelas personagens bíblicas nos conduzem para o fim ao anoitecer. Para todos os Jesuses que passaram por este mundo e os que ainda estão vivendo por aí, quebrando e questionando a cruz que um suposto deus os imcumbiu de carregar. Sempre.

FICHA TÉCNICA

Atuação – Diego Abegão; Ernesto Valença; Fernando Del; Gio de Oliveira; Hayslan Rodrigues; Isabela Freiria; Jaque Line; Letícia Schinelo; Nathane Nathânia; Pedro Gaban; Renan Adrião; Washington Piu; Yago RufatoDireção – Camila Vendramini
Dramaturgia – Gio de Oliveira; Pedro Gaban
Iluminação – Camila Vendramini; Lua Melo Franco; Tiago Calixto
Caracterização – Jéssica Luiza Cardoso

Produção – Christian Rodrigues; Fredd Amorim; Laira Oliva; Vinícius Amorim; Bangalô de Irene Aconchego das artes


Evangelho segundo Tomé


Bem-aventurados os de coração bom e pés calçados que frente ao senhor puderam ver com olhos e mãos as suas chagas, e puderam sentir o calor dos corpos e das línguas de fogo que pairavam ao redor daqueles que escutavam suas palavras. Ainda, bem-aventurados aqueles que entenderam que a procissão longa, as estações e os sermões desta via patibulis¹ era para o espectador ver o que tinha para ser visto e só assim crer.

Ao assistir a qualquer peça é impossível não criar expectativas para aquilo que está por acontecer, ainda mais quando a gente conhece os envolvidos na criação da mesma. Nas mãos da diretora Camila Vendramini, um título, Jesus Era Um Rebelde, não perdeu sua polêmica em nada, mas trouxe uma visão atualizada e muito mais palpável de uma história que não se encontra em um livro milenar e ultrapassado. Era como que um exercício de revisão do texto, na qual os dramaturgos, Gio de Oliveira e Pedro Gaban, se debruçaram e perceberam que aquilo não aconteceu exatamente do jeito que os antigos escreveram.

Numa peça cuja dramaturgia e encenação estão organizadas em estações, os atores conduzem o público ao longo dos espaços e suas temáticas. Quem assiste às cenas poderia facilmente relacionar e fazer referências com passagens bastante comuns no ritual cristão, e (como eu) fazer um exercício rápido de nominar cada uma delas: a concentração do exército de Deus, a anunciação do livre arbítrio de Maria e o plano B do Senhor, a tentação de Jesus nas escadas, o sermão dos três poderes, o fiat² de Maria, os pecados capitais instalados, o sermão da montanha e o eco, o julgamento à brasileira, o comercial cristão e o espetáculo da crucificação de Jesus. Após desfecho, Cristo, apóstolos e simpatizantes se juntaram nas Bodas de Caná. A sequência apresentada, apesar de não ser um roteiro cronológico em algumas cenas, permite ao espectador vivenciar os atos sem prejuízos, porém, quando observados alguns quadros sequenciais era possível uma melhor percepção da obra. Se pudesse então elencar as cenas numa escala de eficácia, o comercial cristão ou a cena do templo tomado por comerciantes ocuparia o topo, enquanto o sermão da montanha e a crucificação teriam o lugar mais baixo. Os critérios para esse ranking levam muito mais em consideração o quanto das cenas chegaram até os espectadores, e as que ocupam a base desse ranking foram aquelas, que a meu ver, não tocaram. O sermão da montanha, por exemplo, apesar de seu potencial, ficou prejudicada na estreia por causa do distanciamento das caixas de som.

Aproveitando o gancho, a técnica da peça foi o único ponto a qual deveriam ter dedicado mais tempo. Vestimentas que eram trocadas ao longo dos atos, eram deixadas em lugares de muita visibilidade e isso provocava uma poluição de cena bastante grande. Um outro momento, quando os atores atiravam bombinhas na fogueira, denotou um descuidado com a segurança dos próprios atores e do público que estava em volta. O risco era muito claro, e alguns espectadores se recusaram a integrar o restante do grupo devido à proximidade com o fogo. Ao final da peça, a presença de um guia com uma lanterna poderia ter facilitado a saída dos espectadores devido a falta de iluminação do espaço e também das escadarias.

Acredito que ajustes tenham sido feitos para o segundo dia de apresentação, mas que a energia e a exaltação dos atores tenha sido a mesma que a da estreia. Realmente, foi belíssimo ver o suor escorrendo no rosto deles, não pelo calor da fogueira ou das tochas, mas porque algo ali dentro parecia ter algo em chamas e pronto para iluminar. Lembro de uma frase dita por um dos personagens que falava algo como que se a verdadeira luz não estivesse na vela, mas sim dentro de nós mesmos. Para uma peça que começou quando o sol ainda estava no céu, houve bastante luz quando por fim, as bodas começaram e a banda tomou seu posto. Jesus estava lá entre os rebeldes! ■ 


¹ Via Patibulis: Caminho da forca em latim fazendo referência à expressão via crucis ou via sacra e ao local de apresentação da peça, que se deu no Morro da Forca em Ouro Preto.
² Fiat: O Fiat de Maria é denominado assim para simbolizar o momento em que Maria de Nazaré aceita o filho de Deus e consente que que seja feita a vontade de Deus.



FICHA TÉCNICA

Atuação – Diego Abegão; Ernesto Valença; Fernando Del; Gio de Oliveira; Hayslan Rodrigues; Isabela Freiria; Jaque Line; Letícia Schinelo; Nathane Nathânia; Pedro Gaban; Renan Adrião; Washington Piu; Yago Rufato
Direção – Camila Vendramini
Dramaturgia – Gio de Oliveira; Pedro Gaban
Iluminação – Camila Vendramini; Lua Melo Franco; Tiago Calixto
Caracterização – Jéssica Luiza Cardoso
Produção – Christian Rodrigues; Fredd Amorim; Laira Oliva; Vinícius Amorim; Bangalô de Irene Aconchego das artes
Arte Gráfica – AbismoEdição de Vídeo – Arthur Medrado
Orientação – Ernesto Valença