quinta-feira, 12 de julho de 2018

Dez incômodos de um modo como

Por: Camila Vendramini


Você sente alguma inquietação? Quando ela surge de fato, costuma ser em ambientes privados ou públicos? Ordens causam desconfortos? E você, por existir, gera algum importuno? Estimular constrangimentos é prazeroso?  Quando o seu saber é refutado você se incômoda? 

Pode-se mencionar que no dicionário incômodo é “um adjetivo na língua portuguesa que se refere ao que não é cômodo, confortável ou aconchegante. Também pode se referir a condição de mal-estar, indisposição ou perturbação provocada por algo.”

Na percepção da filosofia o próprio ato de contestar era uma forma de filosofar, de incomodar a paz e ordem social, podendo ser um perigo para as manobras políticas, os padrões sociais, e os privilégios vigentes na sociedade do capital.  Desde Sócrates na Grécia Antiga, em plena praça pública, o incômodo era algo presente, utilizando do método da dialética, através de estratégias em que a princípio se colocava no lugar de “não-saber” e aprendiz, para depois atacar com ironia o seu interlocutor contestando o seu saber, gerando assim um desconforto.   

O ato de perceber o que incomodava o grupo de teatro Calopsita, foi o mote de inspiração para a construção do espetáculo Em cômodos do modo como, da diretora Flaviane Flores Vieira de Magalhães. O lugar escolhido foi uma casa abandonada de Ouro Preto, havendo 10 cômodos que eram ocupados por 10 artistas com suas temáticas: religião (o paralelo entre céu e inferno), racismo (as mortes causadas em função da cor de pele) , mulher (pura e impura),  capitalismo (as grandes marcas que rege o sistema econômico do país), o riso (o poder que as piadas tem na sociedade), operários (exaustivas cargas horárias de trabalho) e dentre outras questões, que foram trabalhadas nas linguagens da instalação, performance e teatralidade, além dos corredores que coabitavam ações feitas pela “ordem do dia”.

Era uma espécie de visitação a uma galeria/museu em constante movimento, onde ao chegar havia a ordem do dia que entregava um formulário para o espectador preencher. E de acordo com avaliação da classe social, racial e de gênero, o público tinha mais ou menos tempo para visitar o museu. A subversão dos privilégios sociais era posta em xeque logo na entrada.

Pela casa havia camadas de teatralidade, ações, performances, instalações, produzidas a partir dos incômodos pessoais dos artistas envolvidos. Mesmo assumindo uma identidade pessoal, os artistas provocavam nas suas ações uma arte coletiva, onde todos se tornassem autores daquela obra. O espectador fazia a obra acontecer, e a mesma se modificava a partir dele em constante construção, se fazendo e se refazendo, dado à autoria compartilhada por todos os envolvidos durante as performances/instalações.

Os artistas foram a ponte de um entrelugar, um estado transitório para o desenrolar das ações, eles preparam o espaço para se entregarem ao jogo com espectador, convidando este a vivenciar uma experiencia sensorial na sua trajetória da visitação. Segundo David Sperling (2008, p. 128), "o artista transmutado em propositor convida o espectador, pelo ato, a tornar-se participante e, 'pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive'. Participação como ato imanente; a obra é o ato de fazê-la".

Intervenção Qual é sua graça?, realizada durante a apresentação de Em cômodos do modo como. Foto: Nathane Nathana 

Além disso, a proposta do espetáculo era que a relação não ficasse apenas no campo visual – o espectador como voyeur – como é de costume no teatro dramático, em que há uma cisão entre o artista que faz e o público que assiste, mas possibilitar a ele fazer e explorar outras percepções dos sentidos.

Dentro desta ótica, parafraseando Ana Bernstein (2005, p.382), pode-se dizer que a performance possibilita ao espectador re(agir) diante da ação, ele deixa de ser o espectador no sentido tradicional “daquele que vê, ou olha para uma cena ou ocorrência; espectador, circunstante, observador”, isto é, um observador distante, passivo. E passa a ser um espectador ativo e participante do evento artístico, podendo ser o próprio responsável pelo seu percurso experimental.

A ideia do espetáculo se aproximava de uma experiência singular e uma responsabilidade direcionada para o público, estes tinham que decidir como se relacionar com a obra de cada cômodo, mesmo que cada espaço proporcionava um jogo relacional único. Segundo Ricardo Basbaum (2008, p. 111), “mover 'você' (público) da posição passiva de espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria experiência”, o que associa em certa medida ao posicionamento do público em relação ao espetáculo Em cômodos do modo como, já que cabiam a eles decidirem quais seriam os desfechos da sua participação.

Sendo eu sujeito da minha própria experiência na obra, abarcou uma singularidade presente no espetáculo como um todo, já que, cada instalação em um cômodo da casa me causava um incômodo único, seja pela sua temática ou até pela escolha estética do artista que coabitava aquele espaço.

Por fim, penso que, o espetáculo quebrou as paredes que separam artista que faz e público que recebe, se deslocando para um campo onde possamos construir uma rede colaborativa para o fazer artístico, desmistificando as zonas de conforto que estamos habituados na arte, gerando des-confortos.

Artistas envolvidos:

Alexandre Reis – performance ORDEM DO DIA
Bia Mendes – performance ANTI-CONCEPÇÃO FEMININA
Berilo Luigi Deiró Nosella – PROFESSOR ORIENTADOR
Bruna Massaro – performance ORDEM DO DIA
Cláudio Falcão – performance ORDEM DO DIA
Deivison Silvestre – exposição HQ MUNDO AZUL
Ernesto Alves De Almeida – intervenção PINTURA VIVA
Everton Lampe – performance HETEROTOPIAS: ENTRE O CÉU E O INFERNO
Everton José – performance SEM VALOR
Fany Magalhães – DIREÇÃO E PRODUÇÃO
Felipe Cunha – performance A INACREDITÁVEL DIGNIDADE DO BÍPEDE QUE RASTEJA
Fernanda Bacha – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Fernando Augusto – performance ORDEM DO DIA
Fredd Amorim – performance ORDEM DO DIA
João Paulo Sousa – DESIGN GRÁFICO
Jotapê Antunes – performance ORDEM DO DIA
Laís Pires – performance INCLASSIFICAÇÃO LIVRE
Luís Fernando Castro – performance ORDEM DO DIA
Mariana C. Arantes– performance QUAL A SUA GRAÇA?
Marcelo Fernando – vídeo instalação ONTEM-HOJE-ONTEM
Márcio Masselli – performance DRAMA 2º TURNO
Mateus Aquino – performance ORDEM DO DIA
Natália Marques – exposição DESENHO DO CORPO LIVRE
Paulo Carvalho – instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Cão Pereira – intervenção PINTURA VIVA
Raphael Modesto – performance AÇOUGUE
Rody Ocampo – intervenção PINTURA VIVA
Winny Rocha – performance A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL

Referenciais bibliográficas:
BERNESTEIN, A. Marina Abramovic: do corpo do artista ao corpo do público. 2005
BRAGA, P. Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.


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