Você sente alguma
inquietação? Quando ela surge de fato, costuma ser em ambientes privados ou
públicos? Ordens causam desconfortos? E você, por existir, gera algum
importuno? Estimular constrangimentos é prazeroso? Quando o seu saber é refutado você se
incômoda?
Pode-se
mencionar que no dicionário incômodo é “um adjetivo na língua portuguesa que se
refere ao que não é cômodo, confortável ou
aconchegante. Também pode se referir a condição de mal-estar,
indisposição ou perturbação provocada por algo.”
Na percepção da
filosofia o próprio ato de contestar era uma forma de filosofar, de incomodar a
paz e ordem social, podendo ser um perigo para as manobras políticas, os padrões
sociais, e os privilégios vigentes na sociedade do capital. Desde Sócrates na Grécia Antiga, em plena
praça pública, o incômodo era algo presente, utilizando
do método da dialética, através de estratégias em que a princípio se colocava
no lugar de “não-saber” e aprendiz, para depois atacar com ironia o seu
interlocutor contestando o seu saber, gerando assim um desconforto.
O ato de
perceber o que incomodava o grupo de teatro Calopsita, foi o mote de inspiração
para a construção do espetáculo Em
cômodos do modo como, da diretora Flaviane Flores Vieira de Magalhães. O lugar escolhido foi uma casa abandonada
de Ouro Preto, havendo 10 cômodos que eram ocupados por 10 artistas com suas
temáticas: religião (o paralelo entre céu e inferno), racismo (as mortes
causadas em função da cor de pele) , mulher (pura e impura), capitalismo (as grandes marcas que rege o
sistema econômico do país), o riso (o poder que as piadas tem na sociedade), operários (exaustivas cargas horárias de trabalho) e
dentre outras questões, que foram trabalhadas nas linguagens da instalação,
performance e teatralidade, além dos corredores que coabitavam ações feitas
pela “ordem do dia”.
Era uma espécie
de visitação a uma galeria/museu em constante movimento, onde ao chegar havia a
ordem do dia que entregava um formulário para o espectador preencher. E de
acordo com avaliação da classe social, racial e de gênero, o público tinha mais
ou menos tempo para visitar o museu. A subversão dos privilégios sociais era posta
em xeque logo na entrada.
Pela casa havia camadas
de teatralidade, ações, performances, instalações, produzidas a partir dos
incômodos pessoais dos artistas envolvidos. Mesmo assumindo uma identidade
pessoal, os artistas provocavam nas suas ações uma arte coletiva, onde todos se
tornassem autores daquela obra. O espectador fazia a obra acontecer, e a mesma se
modificava a partir dele em constante construção, se fazendo e se refazendo,
dado à autoria compartilhada por todos os envolvidos durante as performances/instalações.
Os artistas foram
a ponte de um entrelugar, um estado transitório para o desenrolar das ações,
eles preparam o espaço para se entregarem ao jogo com espectador, convidando
este a vivenciar uma experiencia sensorial na sua trajetória da visitação. Segundo
David Sperling (2008, p. 128), "o artista transmutado em propositor
convida o espectador, pelo ato, a tornar-se participante e, 'pela experiência,
a tomar consciência da alienação em que vive'. Participação como ato imanente;
a obra é o ato de fazê-la".
Intervenção Qual é sua graça?,
realizada durante a apresentação de Em
cômodos do modo como. Foto: Nathane Nathana
Além disso, a proposta
do espetáculo era que a relação não ficasse apenas no campo visual – o
espectador como voyeur – como é de costume
no teatro dramático, em que há uma cisão entre o artista que faz e o público
que assiste, mas possibilitar a ele fazer e explorar outras percepções dos
sentidos.
Dentro desta ótica, parafraseando
Ana Bernstein (2005, p.382), pode-se dizer que a performance possibilita ao
espectador re(agir) diante da ação, ele deixa de ser o espectador no sentido
tradicional “daquele que vê, ou olha para uma cena ou ocorrência; espectador,
circunstante, observador”, isto é, um observador distante, passivo. E passa a
ser um espectador ativo e participante do evento artístico, podendo ser o
próprio responsável pelo seu percurso experimental.
A ideia do espetáculo
se aproximava de uma experiência singular e uma responsabilidade direcionada
para o público, estes tinham que decidir como se relacionar com a obra de cada
cômodo, mesmo que cada espaço proporcionava um jogo relacional único. Segundo Ricardo
Basbaum (2008, p. 111), “mover 'você' (público) da posição passiva de
espectador para o papel ativo e singular de ser o sujeito de sua própria
experiência”, o que associa em certa medida ao posicionamento do público em
relação ao espetáculo Em cômodos do modo
como, já que cabiam a eles decidirem quais seriam os desfechos da sua
participação.
Sendo eu sujeito da
minha própria experiência na obra, abarcou uma singularidade presente no
espetáculo como um todo, já que, cada instalação em um cômodo da casa me
causava um incômodo único, seja pela sua temática ou até pela escolha estética
do artista que coabitava aquele espaço.
Por fim, penso que, o
espetáculo quebrou as paredes que separam artista que faz e público que recebe,
se deslocando para um campo onde possamos construir uma rede colaborativa para
o fazer artístico, desmistificando as zonas de conforto que estamos habituados
na arte, gerando des-confortos.
Artistas envolvidos:
Alexandre Reis –
performance ORDEM DO DIA
Bia Mendes –
performance ANTI-CONCEPÇÃO FEMININA
Berilo Luigi Deiró
Nosella – PROFESSOR ORIENTADOR
Bruna Massaro –
performance ORDEM DO DIA
Cláudio Falcão –
performance ORDEM DO DIA
Deivison Silvestre –
exposição HQ MUNDO AZUL
Ernesto Alves De
Almeida – intervenção PINTURA VIVA
Everton Lampe – performance
HETEROTOPIAS: ENTRE O CÉU E O INFERNO
Everton José –
performance SEM VALOR
Fany Magalhães –
DIREÇÃO E PRODUÇÃO
Felipe Cunha –
performance A INACREDITÁVEL DIGNIDADE DO BÍPEDE QUE RASTEJA
Fernanda Bacha –
instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Fernando Augusto –
performance ORDEM DO DIA
Fredd Amorim –
performance ORDEM DO DIA
João Paulo Sousa –
DESIGN GRÁFICO
Jotapê Antunes –
performance ORDEM DO DIA
Laís Pires –
performance INCLASSIFICAÇÃO LIVRE
Luís Fernando Castro –
performance ORDEM DO DIA
Mariana C. Arantes–
performance QUAL A SUA GRAÇA?
Marcelo Fernando –
vídeo instalação ONTEM-HOJE-ONTEM
Márcio Masselli –
performance DRAMA 2º TURNO
Mateus Aquino –
performance ORDEM DO DIA
Natália Marques – exposição
DESENHO DO CORPO LIVRE
Paulo Carvalho –
instalação A-TEMPORALIDADE TEMPORAL
Cão Pereira –
intervenção PINTURA VIVA
Raphael Modesto –
performance AÇOUGUE
Rody Ocampo –
intervenção PINTURA VIVA
Winny Rocha –
performance A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL
Referenciais
bibliográficas:
BERNESTEIN, A. Marina
Abramovic: do corpo do artista ao corpo do público. 2005
BRAGA, P. Fios Soltos:
a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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