O
que é a vida? Como defini-la? Debruçando-se sobre essa questão, o
filósofo italiano Giorgio Agamben recorre à cultura grega,
especialmente a Platão e Aristóteles, para tentar estabelecer sua
própria percepção a respeito do tema. Fundamentado em dois termos
gregos distintos utilizados para exprimir o que chamamos de “vida”,
zoé
e bios,
Agamben destrincha aos poucos o assunto.
Zoé,
na antiguidade grega, é a vida natural, ligada às dimensões
biológicas e orgânicas, regida por normas da natureza e de
instintos puramente animais e de (sobre)vivência, livre da cultura e
da vontade. É o simples fato de viver comum a todos os seres vivos.
Ou seja, zoé
é o que aproxima a condição humana da animal: a imersão corporal
no mundo, as exigências biológicas enquanto simples dimensão
fisiológica ou metabólica. Aqui, os seres
não se
qualificam
individual e nem socialmente, suas relações são pré linguísticas
e, portanto, não organizadas de forma lógica e intencional; sendo
apenas guiados por
impulsos naturais.
Bios
indica a forma ou maneira de viver qualificada,
própria de um indivíduo ou de um grupo. É a vida historicamente
elaborada, qualificada por uma característica própria dos seres
humanos: a linguagem. Assim, o ser humano passa a
ser
político
e,
possibilitado de ter uma vida em comunidade, não busca somente
viver, mas levar uma boa vida, de acordo com preceitos adquiridos.
Ele cria racionalmente a pólis
com a finalidade de viver bem, mas com ela nasce o poder. E a
natureza do poder corrompe a vida.
A
pólis
transforma a vida em objeto manipulável de dispositivos e estruturas
ordenadoras do poder, castrando os sujeitos. Toda existência humana,
pela
ordem
jurídica,
é sagrada, sendo o
primeiro direito humano o direito à vida. Mas esse mesmo ordenamento
jurídico capta a vida e decide a
maneira
como ela deve ser vivida. Decide seu início e também seu fim.
Decide a maneira que deve ser exercida a sexualidade das
pessoas,
decide
quem deve viver ou não, decide
qual vida merece ser vivida.
Assim,
a pólis,
espaço de comunhão da vida coletiva, é um espaço de limitação.
Nela se busca construir uma vida além da zoé,
pois essa deve se restringir ao ambiente da casa, da oikos.
A bios,
que se apresentava como o maior dos presentes para a dignificação
do homem sobre os animais, se demonstra como uma prisão que
qualifica a vida, na medida em que exige sua entrega às
normas
estabelecidas. Ao dizer "eu", o sujeito não pode mais
ignorar a sua bios,
está preso a ela e é levado a esquecer-se de sua infantil zoé.
Assim, ele estará sempre em construção, no limiar entre o privado
e o público.
Esses
termos são fundamentais para se pensar os limites da condição
humana, as fronteiras entre o humano e o inumano. Ao longo da
história, as sociedades fundamentadas sob moldes ocidentais se
distanciaram daquilo que os gregos chamavam de zoé
–
a
vida animalesca, instintiva –,
dando lugar à razão.
O
espetáculo Zoé: restos de uma vida nua vai de encontro ao
questionamento da soberania e hegemonia do racional em detrimento da
zoé.
A padronização da vida, do pensamento e dos corpos que leva a
mecanização da existência e a diluição do que é sensível ao
humano. Impossibilitados de comunicar-se com o exterior, dois corpos
nus dançam seus restos. Se contagiam.
Os
sons externos se confundem com os sons corporais dos atores. Os
corpos se fundem entre si. Se mesclam e se penetram a todo momento.
Revelam a possibilidade eterna e pulsante da contaminação. Quem
controla aquilo que nos afeta? Não há segredo ou qualquer
razão que isole um sistema emocional de nós. Ninguém está imune:
o
outro sempre acaba nos encontrando. Evoluímos pela contaminação.
Ou morremos por ela. Para
se falar de vida, é preciso também falar de morte, já
que
uma depende
da outra para poder existir.
O
espetáculo de teatro-dança tem influências do butoh
e do contato improvisação, trazendo à cena corpos disformes,
animalescos, movimentos subjetivos e por vezes repetitivos que causam
estranhamento e estabelecem sentidos de acordo com o olhar de cada
espectador. Durante a maior parte do espetáculo, apenas dois corpos
e suas respirações ocupam o espaço cênico com sutileza,
delicadeza e profundidade.
Constituído
por
fragmentos, o espetáculo caminha entre duplos
–
morte/vida,
luz/sombra, dentro/fora, expansão/contração –
que revelam a essência humana afastada da racionalidade, abdicada
de comunicação verbal.
Em Zoé: restos de uma vida nua é o corpo que se
manifesta. O corpo dividido
jorra
flores.
O corpo grita a sua história e
revela suas linhas.
A pele demarcada
cospe
feridas íntimas. Revela restos de existência guardados nos músculos
de cada corpo presente. O que sobra depois da contaminação?
Em
virtude do
minimalismo estético
da
cena,
qualquer elemento que revela-se
no palco também
grita.
Até mesmo ossos e suor comunicam. A iluminação e
as projeções
acompanham
o som e
o ritmo da
cena que flui em (des)harmonias
envolventes. Adentramos
profundos sentimentos através
das
diferentes ambientações
que a luz aciona.
Em
angústias,
suspensões,
fluidez,
inquietações, aflições e
apneias consiste
o frenesi
selvagem
do espetáculo. O
rito do ritmo desenvolvido pelos atores em cena expande os sentidos
do público, que a esta altura está à flor da pele.
Quando
o espetáculo caminha para o
remate,
um elemento cenográfico desponta
em cena: uma taça de medicamentos que, em determinado momento, banha
um corpo –que
a esta altura já não se encontra mais nu–.
Esse corpo apartado de sua natureza animal está doente. A "cura" realmente cura? Vivemos tempos cruéis onde precisamos ser saudáveis o tempo todo. E nos sentimos culpados de inúmeras maneiras quando não estamos. Mas nem tudo tem cura. Algumas feridas podem nos transformar profundamente e doerem para sempre. No súbito reflexo de um frêmito de
desespero onde a razão domina os impulsos, um corpo tenta se salvar
enquanto urubus de todas as espécies comem os seus restos. O que
fica no espectador são
as tensões e afetações –
quase
que físicas –
de momentos de (in)consciências corporais.
FICHA
TÉCNICA
Dança:
Diego Abegão e Vinícius Amorim
Encenação e iluminação: Vinícius Amorim
Execução de iluminação: Laura Reis e Daniele Viola
Orientação: Éden Peretta
Produção: Anticorpos – investigações em dança
Classificação indicativa: 16 anos
Encenação e iluminação: Vinícius Amorim
Execução de iluminação: Laura Reis e Daniele Viola
Orientação: Éden Peretta
Produção: Anticorpos – investigações em dança
Classificação indicativa: 16 anos
REGISTRO FOTOGRÁFICO
Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Teatro Ouro Preto | Fevereiro de 2018.
Fotos: Panmella Ribeiro e Amanda Gardillari
Fotos: Panmella Ribeiro e Amanda Gardillari
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN,
Giorgio. O
poder soberano e a vida nua.
2. ed. Belo Horizonte: Humanitas, 2010.
BAPTISTA,
M. R. Notas sobre o conceito de vida em Giorgio Agamben. In: Revista
Profanações,
v.1, n.1, 2014, p. 53-74. Disponível em:
<http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof/article/view/632>.
Acesso em julho de 2018.
BARBOSA,
Jonnefer Francisco. Formas e Políticas da vida. In: Kínesis,
Vol. I, n° 02, 2009, p. 105-123.
RIGO,
José Rogério; JUNGES, Fábio César. (2012). Biopolítica:
Reflexões a partir
de Giorgio Agamben. In: Anais
do Congresso Internacional da Faculdades EST,
v. 1, p.1154-1161. São Leopoldo.
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