sexta-feira, 13 de julho de 2018

O que permanece de um todo de que se retirou uma ou várias partes?


Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Foto: Panmella Ribeiro

O que é a vida? Como defini-la? Debruçando-se sobre essa questão, o filósofo italiano Giorgio Agamben recorre à cultura grega, especialmente a Platão e Aristóteles, para tentar estabelecer sua própria percepção a respeito do tema. Fundamentado em dois termos gregos distintos utilizados para exprimir o que chamamos de “vida”, zoé e bios, Agamben destrincha aos poucos o assunto.
Zoé, na antiguidade grega, é a vida natural, ligada às dimensões biológicas e orgânicas, regida por normas da natureza e de instintos puramente animais e de (sobre)vivência, livre da cultura e da vontade. É o simples fato de viver comum a todos os seres vivos. Ou seja, zoé é o que aproxima a condição humana da animal: a imersão corporal no mundo, as exigências biológicas enquanto simples dimensão fisiológica ou metabólica. Aqui, os seres não se qualificam individual e nem socialmente, suas relações são pré linguísticas e, portanto, não organizadas de forma lógica e intencional; sendo apenas guiados por impulsos naturais.
Bios indica a forma ou maneira de viver qualificada, própria de um indivíduo ou de um grupo. É a vida historicamente elaborada, qualificada por uma característica própria dos seres humanos: a linguagem. Assim, o ser humano passa a ser político e, possibilitado de ter uma vida em comunidade, não busca somente viver, mas levar uma boa vida, de acordo com preceitos adquiridos. Ele cria racionalmente a pólis com a finalidade de viver bem, mas com ela nasce o poder. E a natureza do poder corrompe a vida.
A pólis transforma a vida em objeto manipulável de dispositivos e estruturas ordenadoras do poder, castrando os sujeitos. Toda existência humana, pela ordem jurídica, é sagrada, sendo o primeiro direito humano o direito à vida. Mas esse mesmo ordenamento jurídico capta a vida e decide a maneira como ela deve ser vivida. Decide seu início e também seu fim. Decide a maneira que deve ser exercida a sexualidade das pessoas, decide quem deve viver ou não, decide qual vida merece ser vivida.
Assim, a pólis, espaço de comunhão da vida coletiva, é um espaço de limitação. Nela se busca construir uma vida além da zoé, pois essa deve se restringir ao ambiente da casa, da oikos. A bios, que se apresentava como o maior dos presentes para a dignificação do homem sobre os animais, se demonstra como uma prisão que qualifica a vida, na medida em que exige sua entrega às normas estabelecidas. Ao dizer "eu", o sujeito não pode mais ignorar a sua bios, está preso a ela e é levado a esquecer-se de sua infantil zoé. Assim, ele estará sempre em construção, no limiar entre o privado e o público.
Esses termos são fundamentais para se pensar os limites da condição humana, as fronteiras entre o humano e o inumano. Ao longo da história, as sociedades fundamentadas sob moldes ocidentais se distanciaram daquilo que os gregos chamavam de zoé a vida animalesca, instintiva , dando lugar à razão.
O espetáculo Zoé: restos de uma vida nua vai de encontro ao questionamento da soberania e hegemonia do racional em detrimento da zoé. A padronização da vida, do pensamento e dos corpos que leva a mecanização da existência e a diluição do que é sensível ao humano. Impossibilitados de comunicar-se com o exterior, dois corpos nus dançam seus restos. Se contagiam.
Os sons externos se confundem com os sons corporais dos atores. Os corpos se fundem entre si. Se mesclam e se penetram a todo momento. Revelam a possibilidade eterna e pulsante da contaminação. Quem controla aquilo que nos afeta? Não há segredo ou qualquer razão que isole um sistema emocional de nós. Ninguém está imune: o outro sempre acaba nos encontrando. Evoluímos pela contaminação. Ou morremos por ela. Para se falar de vida, é preciso também falar de morte, já que uma depende da outra para poder existir.
O espetáculo de teatro-dança tem influências do butoh e do contato improvisação, trazendo à cena corpos disformes, animalescos, movimentos subjetivos e por vezes repetitivos que causam estranhamento e estabelecem sentidos de acordo com o olhar de cada espectador. Durante a maior parte do espetáculo, apenas dois corpos e suas respirações ocupam o espaço cênico com sutileza, delicadeza e profundidade.
Constituído por fragmentos, o espetáculo caminha entre duplos morte/vida, luz/sombra, dentro/fora, expansão/contração – que revelam a essência humana afastada da racionalidade, abdicada de comunicação verbal. Em Zoé: restos de uma vida nua é o corpo que se manifesta. O corpo dividido jorra flores. O corpo grita a sua história e revela suas linhas. A pele demarcada cospe feridas íntimas. Revela restos de existência guardados nos músculos de cada corpo presente. O que sobra depois da contaminação?
Em virtude do minimalismo estético da cena, qualquer elemento que revela-se no palco também grita. Até mesmo ossos e suor comunicam. A iluminação e as projeções acompanham o som e o ritmo da cena que flui em (des)harmonias envolventes. Adentramos profundos sentimentos através das diferentes ambientações que a luz aciona. Em angústias, suspensões, fluidez, inquietações, aflições e apneias consiste o frenesi selvagem do espetáculo. O rito do ritmo desenvolvido pelos atores em cena expande os sentidos do público, que a esta altura está à flor da pele.
Quando o espetáculo caminha para o remate, um elemento cenográfico desponta em cena: uma taça de medicamentos que, em determinado momento, banha um corpo que a esta altura já não se encontra mais nu. Esse corpo apartado de sua natureza animal está doente. A "cura" realmente cura? Vivemos tempos cruéis onde precisamos ser saudáveis o tempo todo. E nos sentimos culpados de inúmeras maneiras quando não estamos. Mas nem tudo tem cura. Algumas feridas podem nos transformar profundamente e doerem para sempre. No súbito reflexo de um frêmito de desespero onde a razão domina os impulsos, um corpo tenta se salvar enquanto urubus de todas as espécies comem os seus restos. O que fica no espectador são as tensões e afetações quase que físicas de momentos de (in)consciências corporais.

FICHA TÉCNICA
Dança: Diego Abegão e Vinícius Amorim
Encenação e iluminação: Vinícius Amorim
Execução d
e iluminação: Laura Reis e Daniele Viola
Orientação: Éden Peretta
Produção: Anticorpos
investigações em dança
Classificação indicativa: 16 anos

REGISTRO FOTOGRÁFICO

Espetáculo Zoé: restos de uma vida nua | Teatro Ouro Preto | Fevereiro de 2018.
Fotos: Panmella Ribeiro e Amanda Gardillari


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Humanitas, 2010.
BAPTISTA, M. R. Notas sobre o conceito de vida em Giorgio Agamben. In: Revista Profanações, v.1, n.1, 2014, p. 53-74. Disponível em: <http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof/article/view/632>. Acesso em julho de 2018.
BARBOSA, Jonnefer Francisco. Formas e Políticas da vida. In: Kínesis, Vol. I, n° 02, 2009, p. 105-123.
RIGO, José Rogério; JUNGES, Fábio César. (2012). Biopolítica: Reflexões a partir de Giorgio Agamben. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, v. 1, p.1154-1161. São Leopoldo.

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